O anel de Giges
O anel de Giges é uma história contada por Platão na República para discutir se o homem agiria corretamente caso tivesse o poder de fazer maldade sem ser percebido. Num diálogo do livro, Glauco discorda de Sócrates e insiste que justiça e virtude não são de fato desejáveis em si mesmas. O importante é aparentar sem um homem justo e bondoso. Não é necessário ser de fato.
Em
apoio a sua afirmação, Glauco oferece a seguinte história que sugere que a
única razão pela qual as pessoas agem moralmente é que eles não têm o poder de
se comportar de outra forma. Basta retirar o medo da punição, e a pessoa
“justa” e “injusta” se comportará da mesma maneira: injustamente, imoralmente.
Veja
o texto que descreve a história do anel de Giges:
“Giges
era um pastor a serviço do rei de Lídia. Houve uma grande tempestade e um
terremoto fez uma abertura na terra no lugar onde ele estava alimentando seu
rebanho. Espantado com a visão, desceu até a abertura, onde, entre outras
maravilhas, viu um cavalo oco de bronze, com portas. Giges então se agachou e
viu o corpo de um homem com apenas um anel de ouro no dedo. Ele pegou o anel e voltou para a superfície.
“Com
esse anel no dedo, foi assistir à assembléia habitual dos pastores, que se
realizava todos os meses, para informar ao rei o estado dos seus rebanhos.
Tendo ocupado o seu lugar no meio dos outros, virou sem querer o engaste do
anel para o interior da mão; imediatamente se tomou invisível aos seus
vizinhos, que falaram dele como se não se encontrasse ali. Assustado, apalpou
novamente o anel, virou o engaste para fora e tomou-se visível. Logo em seguida
repetiu a experiência, para ver se o anel tinha realmente esse poder;
reproduziu-se o mesmo prodígio: virando o engaste para dentro, tomava-se
invisível; para fora, visível. Assim que teve certeza, conseguiu juntar-se aos
mensageiros que iriam conversar com o
rei. Chegando ao palácio, seduziu a rainha, conspirou com ela a morte do rei, matou-o
e obteve assim o poder.
“Agora
suponha que existem dois anéis desta natureza e o justo recebesse um e o
injusto outro. É provável que nenhum fosse de caráter tão firme para perseverar
na justiça e para ter a coragem de não se apoderar dos bens de outra pessoa.
Afinal, ele poderia tirar sem receio o que quisesse dos mercados e lojas,
introduzir-se nas casas para se unir a quem lhe agradasse, matar uns, libertar
outros da prisão e fazer o que quisesse, tornando-se igual a um deus entre os
homens. Agindo assim, nada o diferenciaria do mau: ambos tenderiam para o mesmo
fim. Isso é uma grande prova de que
ninguém é justo por vontade própria, mas por obrigação, não sendo a justiça um
bem individual, visto que aquele que se julga capaz de cometer a injustiça
comete-a. De fato, todo homem pensa que a injustiça é individualmente mais
proveitosa que a justiça, e pensa isto com razão, segundo os partidários desta
doutrina. Pois, se alguém recebesse a permissão de que falei e jamais quisesse
cometer a injustiça nem tocar nos bens de outra pessoa, pareceria o mais
infeliz dos homens e o mais idiota àqueles que soubessem da sua conduta; em
presença uns dos outros, iriam elogiá-lo, mas para se enganarem mutuamente e
por causa do medo de se tomarem vítimas da injustiça. Eis o que eu tinha a
dizer sobre este assunto.”
Imagine
por um momento que você está de posse de desse anel. Como você usaria isso? Se
você tivesse uma garantia perfeita de que nunca seria pego ou punido, o que
você faria?
Com
esse exercício de pensamento fundamenta-se a hipótese de que seria a moral mera
restrições resultantes do temor à punição. Há, todavia, pessoas que agirão
conforme sua consciência não importa se observados ou não. Mas, não seria a
consciência uma jaula social internalizada, a alienação no sentido de Durkheim
ou o superego de Freud?
As
evidências parecem confirmar essa hipótese. A distância e o anonimato revelaram
verdadeiros trolls na internet. Pessoas que, no cotidiano, seriam afáveis,
mostram seus dentes e destilam ódio na rede.
O
apelo à heteronomia, o temor religioso a uma moral maior, pode ser que funcione
para algumas pessoas. Mas no agregado, cada vez mais vemos pessoas com atitudes
agressivas, desinibidas para fraudar, acessar materiais tabus ou expressar suas
opiniões heterodoxas.
O
tema do anel com super-poderes é recorrente nas mitologias indo-europeias,
tendo diferentes atributos. Um deles é esse de desaparecer, de sumir às vistas,
de torna-se livre de prestar contas a outrem. O poder tão maliciosamente
empregado pelo personagem Griffin de O homem invisível de H.G.Wells ironicamente
é cada vez mais distante.
Em
uma sociedade panóptica, com rastros digitais e câmeras de segurança
controladas por inteligência artificial, o indivíduo passa a se revelar cada
vez mais, sob um aparente manto de invisibilidade.
PLATÃO.
A República. São Paulo, Editora Scipione, 2002.
https://filosofianaescola.com/textos-de-filosofia/o-anel-de-giges/
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