O direito de sonhar - Eduardo Galeano

“A utopia está lá no horizonte. Me aproximo dois passos, ela se afasta dois passos. Caminho dez passos e o horizonte corre dez passos. Por mais que eu caminhe, jamais alcançarei. Para que serve a utopia? Serve para isso: para que eu não deixe de caminhar.”

 – Fernando Birri, citado por Eduardo Galeano in ‘Las palabras andantes?’ de Eduardo Galeano. publicado por Siglo XXI, 1994.

 



O direito de sonhar

 

Que tal se delirarmos por um tempinho

Que tal fixarmos nossos olhos mais além da infâmia

Para imaginar outro mundo possível?

 

O ar estará mais limpo de todo o veneno que

Não provenha dos medos humanos e das humanas paixões.

 

Nas ruas, os carros serão esmagados pelos cães.

As pessoas não serão dirigidas pelos carros

Nem serão programadas pelo computador.

Nem serão compradas pelos supermercados

Nem serão assistidas pela TV,

A TV deixará de ser o membro mais importante da família,

Será tratada como um ferro de passar roupa

Ou uma máquina de lavar.

 

Será incorporado aos códigos penais

O crime da estupidez para aqueles que a cometem

Por viver só para ter o que ganhar

Ao invés de viver simplesmente

Como canta o pássaro em saber que canta

E como brinca a criança sem saber que brinca.

 

Em nenhum país serão presos os jovens

Que se recusem ao serviço militar

Senão aqueles que queiram servi-lo.

Ninguém viverá para trabalhar.

Mas todos trabalharemos para viver.

 

Os economistas não chamarão mais

De nível de vida o nível de consumo

E nem chamarão a qualidade de vida

A quantidade de coisas.

 

Os cozinheiros não mais acreditarão

que as lagostas gostam de ser fervidas vivas.

Os historiadores não acreditarão que os países adoram ser invadidos.

Os políticos não acreditarão que os pobres

Se encantam em comer promessas.

 

A solenidade deixará de acreditar que é uma virtude,

E ninguém, ninguém levará a sério alguém que não seja capaz de rir de si mesmo.

 

A morte e o dinheiro perderão seus mágicos poderes

E nem por falecimento e nem por fortuna

Se tornará o canalha em virtuoso cavalheiro.

 

A comida não será uma mercadoria

Nem a comunicação um negócio

Porque a comida e a comunicação são direitos humanos.

Ninguém morrerá de fome

Porque ninguém morrerá de indigestão.

 

As crianças de rua não serão tratadas como se fossem lixo

Porque não existirão crianças de rua.

As crianças ricas não serão como se fossem dinheiro

Porque não haverá crianças ricas.

 

A educação não será privilégio daqueles que podem pagá-la

E a polícia não será a maldição daqueles que podem comprá-la

 

A justiça e a liberdade, irmãs siamesas

Condenadas a viver separadas

Voltarão a juntar-se, bem agarradinhas,

Costas com costas.

 

Na Argentina, as loucas da Plaza de Mayo

Serão um exemplo de saúde mental

Porque elas se negaram a esquecer

Os tempos da amnésia obrigatória.

 

A Santa Madre Igreja corrigirá

Algumas erratas das Taboas de Moisés,

E o sexto mandamento mandará festejar o corpo.

A Igreja ditará outro mandamento que Deus havia esquecido:

“Amarás a natureza, da qual fazes parte”

 

Serão reflorestados os desertos do mundo

E os desertos da alma

Os desesperados serão esperados

E os perdidos serão encontrados

Porque eles são os que se desesperaram por muito esperar

E eles se perderam por tanto buscar.

 

Seremos compatriotas e contemporâneos

De todos o que tenham

A vontade de beleza e vontade de justiça

Tenham nascido quando tenham nascido

Tenham vivido onde tenham vivido

Sem importarem nem um pouquinho

As fronteiras do mapa e do tempo.

 

Seremos imperfeitos

Porque a perfeição continuará sendo o aborrecido privilégios dos deuses

Mas neste mundo, trapalhão e fodido,

Seremos capazes

De viver cada dia como se fosse o primeiro

E cada noite como se fosse a última.

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